sábado, 31 de agosto de 2013

Terra, Terreiro e Teclado, de Beth Andrade .

Nasci no sertão. Sertão sem seca, de sementes certas, céu cintilante, cerrado fecundo, onde  cresce caju no mato.
Na minha terra, amarelinha é maré, o que sobe; sopita, jamelão é pitanga, balão é bexiga e almôndega é pelota.
Foi assim que vivi os primeiros quinze anos de vida: descalça, displicente,  descendo ruas feito deusa e comendo fruta no pé que nem pivete.
Só comia maçã quando ficava doente e tomava guaraná em dias de festa, furando a tampinha  da garrafa com prego, que era para demorar mais a acabar, ou então, pra sacudir e fazer  espuma para esguichar longe.
Nunca tinha visto piscina azulejada e pessoa que morasse em  casa que tivesse uma, seria a pessoa mais feliz desse mundo.
O meu pai era um pai poderoso, paciente, puritano e preocupado. De noite, ele sentava na  poltrona da sala, batia com a mão na perna e me chamava pra ir sentar no seu colo. A minha mãe colocava uma tigela cheia de pipoca sobre a mesa e a gente comia, dava risada e  falava muito.
 De vez em quando, meu pai viajava e meus irmãos e eu tirávamos sorte pra ver quem ia  dormir com ela. Era uma cama quente, grande e gostosa.
No dia em que meu pai chegava tinha pirulito, bala e chicletes. Muita novidade que ele  contava na sala e que a gente ouvia de olho arregalado. Ele, sem perder o embalo, falava dos  lugares onde havia ido. Em um salão muito grande, uma moça de dedos compridos sentava ao  piano e tocava... era lindo.
Ele nunca chegava perto da moça e nem do piano, mas morria de  vontade.
Na minha terra, não tinha morro. Só o morro do cemitério o que não fazia nenhuma diferença  porque a gente nunca ia lá mesmo. Todo mundo que a gente amava era bem vivo.
Na minha terra, as alamedas eram largas, longas e lindas. Nunca vi lugar melhor para andar de bicicleta, apostar uma corrida ou andar à toa. Eu descia da escola com um bando de gente do  meu tamanho, comendo manga verde com sal, chutando pedras e dando risadas. Um dia desses eu vinha descendo e quando dobrei a esquina vi um caminhão muito grande na  porta de casa. Gente de cara diferente e gente de cara conhecida espiando tudo. Apressei o passo e quando abri a porta vi meu pai sentado na minha cama com os olhos  brilhantes. Na frente dele estava um piano grande e bonito.Tão grande que era maior do que  eu. O meu pai chegou perto de mim, me abraçou e acariciou aquelas teclas brancas  lentamente, como se estivesse tocando um bebê. E eu fiquei grogue, gaguejando. Sentei no  banquinho, fechei os olhos, mexi os dedos sobre as teclas e fiquei ali. Fiquei tanto que nunca  mais consegui me levantar dali.

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